Hacktivistas ucranianos do grupo Cyber Resistance penetraram no Departamento de Informação e Comunicações em Massa do Ministério da Defesa Russo (DIMC), entregaram documentação interna exclusiva e forneceram acesso ao software, usado por propagandistas militares russos, à Comunidade Internacional Voluntária de Informação InformNapalm.
O DIMC é o domínio do notório Igor Konashenkov, o porta-voz que diariamente dá voz a relatórios russos a partir da zona de combate. Aos olhos ucranianos, Igor Konashenkov tornou-se há muito tempo um “meme” ambulante, pois foi este que, dia após dia, reclamou a frase “não há perdas” durante as primeiras semanas da invasão e reivindicou milhares de tanques ucranianos destruídos, em número superior ao que a Ucrânia tinha antes da invasão.
Mas essa realidade paralela inventada, criada por relatórios do Ministério da Defesa Russo, não é apenas uma invenção da imaginação de Konashenkov. A documentação recuperada deixa claro o quão distante da situação real está todo o Departamento de Informação do Ministério da Defesa da Rússia.
Funcionários do departamento e dos serviços de imprensa dos distritos militares russos e frotas sob seu controle analisam constantemente o espaço de informação russo. Tudo o que está directamente ou indirectamente relacionado com as notícias sobre as actividades das Forças Armadas Russas, está refletido em diversos relatórios. Além disso, as publicações em meios de comunicação estrangeiros são analisadas separadamente.
Este é um exemplo da análise diária dos meios de comunicação:
- Análise diária dos meios de comunicação: 13/11/2023 (13.11.2023). [PDF RUS]
Aqui está uma visão geral de como o exército agressor é coberto pelos meios de comunicação estrangeiros:
- Forças Armadas Russas nos meios de comunicação estrangeiros 13/11/2023 [PDF RUS]
O departamento também prepara relatórios diários detalhados com transcrições de todos os relatórios de propaganda do dia:
- Análise de meios de comunicação (resumo) 13/11/2023 [PDF RUS]
Nós perguntamo-nos quem revê tudo isso, porque às vezes os textos parecem muito desagradáveis, incorrectos. Parece que os próprios propagandistas russos não lêem muito atentamente o que escrevem. Por exemplo, eles chamam seus militares de “prisioneiros militares” [exemplo: “военнопленные” em vez de “военнослужащие”].
Todas as semanas, o Coronel Kochetkov submete a Konashenkov um relatório sobre o âmbito dos materiais disponibilizados e o alcance das metas para aprovação.
- Relatório da reunião de 11 de Novembro de 2023 [DOCX RUS]
E mais tarde, outro funcionário do departamento, Sergei Tovpeko, envia este documento junto com os eventos de informação planeados nas Forças Armadas Russas para a semana seguinte e um relatório semanal na imprensa escrita a todos os chefes dos serviços de imprensa dos distritos militares, filiais de serviço, frotas, etc.
- Imprensa escrita de 4 a 10 de Novembro de 2023 [DOCX RUS]
- Principais temas nas Forças Armadas Russas de 13 a 19 de Novembro. [DOCX RUS]
Pacote de software especial “KATYUSHA”
Não é segredo que a Rússia tem o controlo total sobre o seu espaço de informação. Esse controlo necessita de monitorização constante. E como vemos nos relatórios produzidos pelo DIMC, analisam quantidades colossais de informações. Portanto, os russos usam software especial para recolher dados dos meios de comunicação para as suas reportagens.
Este software é o sistema de informação e análise para monitorização de meios de comunicação online “KATYUSHA”.
Os hacktivistas da Cyber Resistance obtiveram acesso a este sistema e puderam investigar as suas características.
“Katyusha” é um homólogo russo do sistema de monitorização dos meios de comunicação SemanticForce.
Foi desenvolvido pela empresa privada M13. Afirmam ser especializados em tecnologia da informação na área de monitorização dos meios de comunicação, oferecendo três sistemas: ARSENAL, ARENA e KATUSHA. O seu software é usado pela administração presidencial russa, pelo governo, pelos ministérios e departamentos federais, pelas agências executivas do governo regional, pelas empresas comerciais e por organizações públicas. Em 2021, o Ministério da Defesa russo comprou uma licença para usar o “Katyusha”, atribuindo 320 milhões de rublos para utilizar esse software até 2023 inclusive.
O que é que o sistema “Katyusha” oferece?
Monitorização dos meios de comunicação de 24 horas por dia, 7 dias por semana. De acordo com o seu criador, o banco de dados cobre 40.000 fontes: meios de comunicação federais e regionais russos, meios de comunicação transmitidos em russo e os “meios de comunicação chave” no exterior;
- opções para classificar informações por tempo, temas, títulos, objectos nomeados e tipos de meios de comunicação;
- avaliação de informações com base no sentimento e na cobertura do público;
- monitorização dos principais meios de comunicação impressos russos;
- monitorização de meios de comunicação tradicionais e mais recentes (redes sociais);
- exibição dos principais eventos de informação do dia, semana ou período selecionado;
- detecção de ataques de informação coordenados.
Isso é o que o criador declara. No entanto, a pesquisa de “Katyusha” por hackers mostrou as suas verdadeiras capacidades. O sistema exibe eventos e mensagens por categoria (no topo), por exemplo, para Zvezda, a empresa de meios de comunicação do Exército russo:
Ou o que os meios de comunicação estrangeiros escrevem sobre o Exército russo:
Relatórios semanais e mensais são carregados pelo sistema:
A circulação da maior imprensa russa escrita é adicionada ao sistema diariamente:
O primeiro separador “Forças Armadas Russas” tem opções de análise mais detalhadas, e as mensagens são imediatamente marcadas pelo sentimento – positivo (verde), negativo (vermelho), neutro (amarelo). Aqui é possível visualizar publicações e eventos relevantes (ou seja, notícias com maior índice de citação), fazer pesquisas por pessoas e organizações (o sistema extrai notícias relacionadas).
É claro que os russos prestam atenção especial às redes sociais. O sistema extrai publicações no Telegram, VK, OK, LiveJournal e similares em tempo real. O Facebook e o Instagram também marcam presença, embora sejam insignificantes. Os vídeos do YouTube também são incluídos. Também notamos alguns canais ucranianos, que foram identificados pelo sistema russo.
O sistema também possui um separador interessante com uma análise dos canais populares do Telegram russo. Eles são explicitamente classificados em positivos e negativos. Porque isso foi feito será discutido mais tarde.
O sistema também gera estatísticas sobre publicações e menções de indivíduos e organizações no período selecionado.
Porém, ao analisar esse sistema, chegamos à conclusão de que “Katyusha” é uma espécie de ferramenta de “decoração de vitrines”. Obviamente, o DIMC utiliza-o para relatórios. No entanto, o sistema deturpa claramente o sentimento. Relatórios negativos sobre o exército russo, a liderança militar e política da Federação Russa são desconsiderados ou marcados como neutros. O sistema está programado para encobrir a realidade, ou seja, sem reportagens negativas sobre Putin ou o exército, sem falhas. “Uma espécie de Konashenkov digital” – “não há perdas”.
O sistema analisa principalmente o espaço de informação russo. Os meios de comunicação ocidentais e ucranianos estão presentes no banco de dados, mas devem ser pesquisados manualmente. Eles não afetam o quadro geral. Qualquer análise baseia-se predominantemente em fontes russas, que estão sujeitas a censura e autocensura. Consequentemente, o valor de tal sistema reside em reflectir o estado do espaço de informação russo: uma extensa rede de meios de comunicação controlados, campanhas coordenadas nos meios de comunicação, censura total (e ainda mais autocensura). Em suma, mapear uma realidade paralela e auto-congratulatória construída pelos meios de comunicação nacionais.
Sim, o sistema também vê notícias negativas. No entanto, para um relatório “negativo”, a extensa máquina de propaganda russa lança dezenas de relatórios “positivos”, desviando efectivamente a atenção e mudando o ênfase. Após o bem-sucedido ataque ucraniano ao quartel-general da Frota Russa do Mar Negro, a 22 de Setembro, assistimos pessoalmente online como a máquina de propaganda russa reagiu rápido, adaptou-se rapidamente e depois distorceu totalmente o significado do evento.
CARTA DE KONASHENKOV
Os hacktivistas da Cyber Resistance encontraram igualmente e entregaram à InformNapalm um documento interessante, uma carta de Konashenkov para Shestakov, Director Geral Adjunto da Empresa Estatal de Televisão e Radiodifusão de Toda a Rússia (canais de TV Rússia-1, Rússia-24).
Esta carta é interessante porque menciona alguns canais russos “não confiáveis” do Telegram. Infelizmente, os hacktivistas não conseguiram obter o anexo com a lista desses canais. No entanto, outra olhadela ao programa “Katyusha” dá-nos uma boa ideia de qual era a lista de Konashenkov.
Conforme evidenciado pelo sistema interno do DIMC, os propagandistas militares do Ministério da Defesa russo já estão a distinguir entre canais confiáveis e não confiáveis no Telegram. E há uma certa lógica nisso. Ambos os grupos contêm maioritariamente canais pró-guerra, mas alguns são mais leais à liderança política russa, outros menos, e os propagandistas uniformizados estão a perceber essa divisão. Por exemplo, em 16 de Novembro, Putin concedeu ao fundador do canal “Rybar” do Telegram, Mikhail Zvinchuk, a Ordem Russa por Mérito à Pátria, classe II. O canal “Rybar” é considerado “confiável” pela máquina de propaganda russa e está listado no sistema em conformidade.
Conforme relatado pelos meios de comunicação da tal chamada de “oposição” russa, em Outubro de 2022, a pedido de Valeriy Gerasimov, Roskomnadzor e as Agências de Aplicação da Lei russas começaram a verificar o conteúdo dos correspondentes de guerra russos em busca de “falsificações” e “desacreditação” do Exército russo. Isto foi seguido pela prisão de Igor Girkin, que se tornou um crítico veemente da liderança política russa pela sua abordagem de linha-dura da guerra insuficiente.
Parece que agora, no período que antecede as eleições de Putin, as Agências russas de Aplicação da Lei estão a iniciar a última onda de purgas do Telegram de qualquer deslealdade para com o Kremlin.
A 13 de Novembro, todos observámos estranhas convulsões nos meios de comunicação russos com a declaração do “Grupo de forças russas de Dnieper” sobre outro “gesto de boa vontade” (também conhecido como retirada) na Região de Kherson. Os principais meios de comunicação russos publicaram e, alguns minutos depois, “anularam” a notícia relevante (outro exemplo da novilíngua russa). Então, dezenas de especialistas e analistas ficaram intrigados com o que acabara de acontecer. O lado ucraniano declarou então que se tratava de uma operação psicológica russa e não havia provas de quaisquer preparativos por parte dos russos para a retirada.
Tendemos a partilhar esta opinião com apenas uma reserva. Esta operação especial não foi dirigida contra o lado ucraniano como tal. Pelo contrário, foi uma tentativa do Ministério da Defesa russo de atrair canais desleais do Telegram, tendentes a uma cobertura crítica. Como o canal “Dois Majores” (russo: “Два майора), onde é fácil encontrar conteúdo crítico. Apesar de ser outro meio de propaganda de guerra, está listado como “não confiável” no sistema Katyusha.
Se olhar para a carta de Konashenkov, esta está datada de 14 de novembro. A declaração bizarra sobre a retirada do “Grupo de forças do Dnieper” foi publicada e “anulada” em 13 de Novembro. Nada nem ninguém pode impedir Putin de vencer triunfantemente as eleições em silêncio. As ditaduras não toleram dissidências.
Portanto, já no dia 17 de Novembro, a Rússia está a reforçar o controlo sobre a Internet, o que, segundo os analistas do ISW (Instituto para o Estudo da Guerra), é mais uma manifestação de censura e uma tentativa de limitar o livre acesso à informação no intuito de “controlar” as eleições de Putin. E mais tarde a ISW opinou que a declaração de Shoigu na reunião do Ministério da Defesa em 21 de Novembro é considerada como uma tentativa de minimizar as preocupações de alguns blogueiros de guerra russos sobre a incapacidade da Rússia de repelir de forma decisiva os ataques ucranianos na margem leste do rio Dnipro. Os analistas, no entanto, duvidam que estas declarações acabem com as queixas que se espalham no espaço de informação russo.
É claro que todos gostaríamos de acreditar na retirada dos russos na margem oriental. Mas definitivamente não queremos fazer parte dos seus jogos de informação. Então, deixemo-los lutar entre si. Entretanto, o Exército Ucraniano combate valentemente para acelerar a verdadeira retirada dos russos dos territórios ocupados da Região de Kherson, enquanto os hacktivistas ucranianos, tendo penetrado nos sistemas de propaganda de Konashenkov, prometem muito mais surpresas.
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