
No final de 2021, a fim de desviar a atenção dos Estados membros da OTAN da ameaça de uma invasão russa em grande escala da Ucrânia e de outra escalada da agressão militar russa no Donbas ucraniano, as agências de inteligência russas mais uma vez intensificaram esforços híbridos para desestabilizar a situação nos Balcãs.
Esse processo foi precedido por tentativas parcialmente bem sucedidas do Kremlin de criar uma complexa crise de migração nas fronteiras da Lituânia e da Polónia por procuração com o ditador bielorrusso Aleksandr Lukashenko (Łukašenka). A Federação Russa direcionou a sua arma de migração híbrida para a Polónia, na esperança de que isso exacerbe as diferenças políticas nas relações entre Varsóvia e Bruxelas. No entanto, esse plano falhou porque o Ocidente colectivo conseguiu localizar a ameaça, principalmente graças à resiliência dos guardas de fronteira polacos e lituanos. Moscovo imediatamente começou a procurar novas formas de desestabilização nas fronteiras da UE.
Curiosamente, a Rússia volta a desestabilizar os Balcãs periodicamente para explorar o tabuleiro de xadrez político e tentar criar novos pontos de tensão. Após o golpe fracassado no Montenegro em 2016, os serviços secretos russos mantiveram-se na sombra, à espera de novas oportunidades. Ao mesmo tempo, os activos de “soft power” (em português, poder brando, poder de convencimento ou poder suave) russos continuaram em busca de novas oportunidades híbridas através de várias fundações, contractos inter-estatais e investimentos. Descontos no preço do gás, negócios de armas e outros instrumentos de influência híbrida do Kremlin também contribuíram para o esforço de desestabilização.
De acordo com a avaliação do jornalista Vitaly Portnikov, o colapso da Bósnia e Herzegovina já começou, e o presidente sérvio Aleksandar Vucic, que poderia ter estabilizado a situação, acabou “no bolso de Putin”.
No entanto, os sinais de que a liderança sérvia está a cair numa dependência significativa da Federação Russa manifestam-se não apenas pelo desconto sem precedentes no gás russo. A “trela curta” do Kremlin também passa pelo nível dos contractos militares inter-estatais. No início de Dezembro, a Sérvia anunciou planos de compra de um lote de caças e helicópteros russos, bem como o recebimento iminente de uma bateria dos mais recentes sistemas de mísseis terra-ar e armas russos Pantsir-S1M. A 10 de Dezembro, foi noticiado que o governo sérvio e a Companhia Estatal de Energia Nuclear Rosatom assinaram um acordo para a construção de um centro de tecnologia nuclear. E aqui chegamos a outros exemplos menos óbvios das operações de influência russa na Europa envolvendo a Rosatom.
A cruzada da Rosatom
O arcebispo da Igreja Ortodoxa da Ucrânia Yevstratiy Zorya observou que as recentes, numerosas viagens de trabalho do Chefe Adjunto do Departamento para as Relações Externas da Igreja Ortodoxa russa, o arcebispo Nikolai Balashov, a Belgrado (Sérvia), Banja Luka (Bósnia e Herzegovina) e Zagreb (Croácia) não foi por acaso tendo em conta a mais recente escalada nos Bálcãs. O arcebispo ucraniano Yevstratiy Zorya observa que este departamento tem sido usado pelo Kremlin desde os tempos soviéticos como um encobrimento para os esforços de inteligência no exterior.
Além dos Balcãs, os russos continuaram a projetar o seu “soft power” na Polónia. A 11 de Dezembro de 2021, uma delegação da Fundação Russa para o Apoio à Cultura e Herança Cristã (financiada pela empresa estatal russa Rosatom) visitou a Diocese de Białystok-Gdańsk da Igreja Ortodoxa Polaca. Segundo fontes bem informadas, os russos entregaram uma grande “doação” de milhões de euros a religiosos polacos. Indirectamente, o facto de uma “doação” significativa foi confirmado (nos seus comentários) pelo chefe desta fundação russa, Yegor Skopenko, que chefiou a delegação. Este disse que estava “envolvido em projetos de caridade para outras igrejas locais”. Até agora, esses dados precisam de mais verificação, pois permanece um mistério como os russos conseguiram transportar uma quantidade tão significativa de dinheiro e se os canais diplomáticos estiveram envolvidos. Vamos tentar encontrar informações adicionais em fontes abertas.
Por que temos suspeitas sobre as ações de fundações russas próximas à Igreja Ortodoxa Russa?
Anteriormente, a Comunidade Internacional Voluntária de informação InformNapalm publicou uma série de investigações intitulada FrolovLeaks, que expôs os métodos da influência russa híbrida precisamente através de instituições religiosas, fundações, organizações, líderes religiosos, políticos e pessoas próximas à Igreja Ortodoxa Russa. Além disso, com base nos dados recuperados pelos hacktivistas da Ukrainian Cyber Alliance dentro da operação FrolovLeaks, conseguimos descobrir factos que indicam que algumas provocações e protestos anti-ucranianos na Polónia foram ordenados por grupos russos.
Nesta reportagem, concentramo-nos em Yegor Skopenko, que tem um histórico bastante curto, mas ao mesmo tempo bastante interessante. De acordo com as informações do seu próprio perfil, desde 2014 que trabalhava como director geral adjunto na empresa da Zona Económica Especial de Alabuga. De Fevereiro de 2018 a Setembro de 2020, chefiou a ANO Management Company for the Development of the Sarov-Diveyevo Cluster. Depois disso, tornou-se o chefe da Fundação de Apoio à Cultura e Património Cristão. Essa fundação, estabelecida pela Rosatom em 2019, tem uma estrutura extensa e pode ser usada pelo Kremlin para espalhar a sua influência híbrida, fazer lobby e dar encobrimento a obscuras transacções financeiras internacionais da Rússia.
O site afirma que a fundação acima mencionada está a implementar projetos em 15 países, incluindo Bulgária, Geórgia, Turquia, Finlândia, Estados Unidos, Espanha, Suécia, Bósnia e Herzegovina, Israel, França, Síria, Polónia, Líbano, Islândia e Rússia.
Skopenko Yegor Igorevich
Quanto ao chefe oficial da fundação, que faz vários encontros internacionais e viagens ao exterior, Yegor Skopenko tem um perfil muito pouco informativo nas redes sociais. Por exemplo, o seu perfil do Facebook contém apenas algumas fotografias: um retrato de estúdio de alta qualidade de 2020 (arquivo), uma pequena fotografia de 2019 (arquivo) e uma fotografia de 2013 onde Skopenko é visto a vestir um uniforme militar com alças de sargento (arquivo).
Por sua vez, uma pesquisa de fotografias do Google indica que a segunda fotografia do seu perfil foi provavelmente tirada durante uma conferência de zoom em que Skopenko foi registado com um nome diferente, “Stanislav”, e listado como Gerente de Operações Técnicas de Frota da Carnival Corporation & plc (A Carnival Corporation & plc é uma empresa anglo-americana que realiza cruzeiros marítimos, sendo a maior do mundo nesse ramo com sede em Miami, EUA), que presta serviços de organização e manutenção de cruzeiros marítimos). O Google ainda possui uma página gerida com algumas de suas informações de perfil em zoominfo.com.
Em geral, há poucas informações abertas na sua página do Facebook. Indica-se apenas que é supostamente casado desde 2016, é originariamente de Moscovo e mora em Nizhny Novgorod (arquivo). Também indicou que estava “interessado em homens” (arquivo). De Janeiro de 2014 a Dezembro de 2021, publicou poucas publicações no Facebook que são abertas ao público em geral. Parece que antes da sua viagem de trabalho aos Balcãs, Skopenko decidiu (ou recebeu tal conselho) preencher um pouco a sua página quase vazia de informação. Portanto, a 3 de Dezembro de 2021, em apenas 28 minutos, este publicou várias com comentários no Facebook e no perfil do Instagram recém-criado:
Comentário à primeira fotografia:
“A minha primeira viagem de trabalho ao Líbano, à outrora rica cidade de Beirute. Agora que há uma crise económica, muitos esperam na fila por 3 horas no posto de gasolina. Anteriormente, o país era conhecido como a Suíça Oriental devido ao número de bancos e pessoas ricas. Não é pior do que Sochi, então recomendo a todos que viajem até cá nas férias. O principal conselho é não pagar com cartão e viajar com dinheiro.”
De acordo com a notícia no site da Fundação de Apoio à Cultura Cristã e Património, o encontro aconteceu em Beirute a 6 de Novembro de 2021 (arquivo).
Comentário à segunda fotografia:
”Mais uma vez visitei a Turquia, Antalya, como parte de uma viagem de negócios. Visitei a paróquia da Igreja Russa em Antalya – gente muito sincera. Eu definitivamente voltarei aqui. Recomendo que todos visitem o lugar quando viajarem de férias.”
Segundo uma notícia publicada no site da Fundação para o Apoio à Cultura e Património Cristão, a viagem à Turquia aconteceu a 10 de Novembro de 2021 “com a bênção do Patriarca Kirill” (arquivo).
Em Dezembro de 2021, de acordo com os bancos de dados e registos russos, Yegor Skopenko foi oficialmente denominado como chefe e director executivo da Fundação para o Apoio à Cultura Cristã e Património, número fiscal 9704008570, endereço legal: ap. Rua Volkhonka, 14, 9, Moscovo. Em 2020, a receita da fundação totalizou RUB 11,5 milhões (aproximadamente EUR 138.000) (fonte, arquivo).
Skopenko foi anteriormente mencionado como o fundador da companhia Ideo, NIF pessoa colectiva 1646044660 e da companhia Angry Hot dogs, NIF pessoa colectiva 1646039445 (ambas já liquidadas). Ambas as empresas foram registradas em Elabuga, República do Tartaristão, Federação Russa.
Tomados em conjunto, os dados apresentados sugerem que a fundação recém-criada é um recurso de encobrimento para as agências de inteligência russas que operam usando instituições religiosas em todo o mundo e fazem lobby pelos interesses russos através de injeções financeiras em grande escala.
Manipuladores da Fundação de Rosatom
É a partir do segundo semestre de 2021 que a assistência pró-activa da Rosatom tem sido observada em vários contactos internacionais disfarçados de actividade religiosa. Curiosamente, os responsáveis pela mencionada Fundação para o Apoio à Cultura Cristã e Herança são, Alexei Likhachev (estadista russo, CEO Rosatom) e Sergei Obozov, Director Geral Adjunto da Rosatom, CEO da empresa RosEnergoAtom, CEO Adjunto da empresa AtomEnergoProm.
Fotografia: Primeiro Vice-Chefe da Administração do Presidente da Federação Russa, Sergei Kirienko (desde 2020 nas listas de sanções da UE e do Reino Unido) e Alexei Likhachev / fotografia de arquivo, TASS
Sergei Obozov recebe Ordem de São Serafim de Sarov de Segundo Grau / Fotografia tirada a 18 de Setembro de 2020
Curiosamente, foram Alexei Likhachev, Sergei Obozov e Yegor Skopenko que se encontraram com o Patriarca Kirill (Vladimir Gundyaev) de Moscovo na Residência Patriarcal e Sinodal no Mosteiro de Danilov ou Sacro Mosteiro Danilov em Moscovo em 30 de Novembro de 2021. Durante a reunião, o patriarca também condecorou Alexei Likhachev com a Ordem de São Serafim de Sarov de II grau.
Durante essa reunião, instruções para mais “peregrinação” pelos Balcãs e promoção dos interesses russos também podem ter sido emitidas.
A 6 de Dezembro os representantes da fundação foram a Belgrado, Sérvia, onde se encontraram com o Patriarca Porfírio da Sérvia. A reunião contou com a presença de Yegor Skopenko, Arcipreste Nikolai Balashov, Chefe Adjunto do Departamento de Relações Externas da Igreja Ortodoxa Russa, bem como Alexander Botsan-Kharchenko, Embaixador da Rússia na Sérvia. Na verdade, é precisamente através dos canais diplomáticos que os russos podem trazer quantias significativas de dinheiro para “doações” sem controlo alfandegário ou perguntas.
Também no dia 6 de Dezembro, estiveram num mosteiro em Ugljevik (Republika Srpska, Bósnia e Herzegovina).
A 7 de Dezembro, Nikolai Balashov e Yegor Skopenko visitaram Banja Luka (Republika Srpska, Bósnia e Herzegovina).
Já nos dias 8 e 9 de Dezembro, Nikolai Balashov e a delegação da Fundação para o Apoio à Cultura e ao Património Cristão estiveram na Croácia, em visita à Diocese de Gornij Karlovac. De acordo com dados de fontes abertas, “a Fundação contribuiu para o restauro de um dos santuários afetados pelo terramoto da Diocese de Gornij Karlovac – a Igreja da Natividade da Virgem em Glina”. Esse é outro sinal indirecto de “doações” generosas ou investimentos canalizados pelos russos.
A 10 de Dezembro, a delegação da fundação foi recebida pelo chefe da Igreja Ortodoxa Polaca, Metropolita Sawa, e também visitou a Diocese de Białystok-Gdańsk. Massivas “doações” também foram feitas durante a visita à Igreja Ortodoxa Polaca.
Conclusão
Existem muitas áreas onde a Rússia exerce influência híbrida para desestabilizar diferentes países, empregando meios informativos, económicos, políticos, militares, terroristas, etc. Enquanto isso, a Igreja Ortodoxa Russa continua a ser um dos pilares do Kremlin, o que oferece oportunidades adicionais para seus agentes de influência para se infiltrar rapidamente nos países-alvo. Os oficiais de alto escalão da Igreja Ortodoxa Russa são frequentemente chamados de “sabotadores em mantos” ou “sacerdotes com insígnias”, através de vários testemunhos da estreita cooperação da Igreja com os soviéticos no passado, com o KGB, e, mais recentemente, com os serviços secretos da Federação Russa; com o FSB. Corporações estatais e funcionários trabalham em estreita colaboração com instituições religiosas para promover os interesses do conceito de “mundo russo”.
O Kremlin está particularmente interessado em desviar o foco dos Aliados da OTAN para seus problemas internos, longe da crescente agressão da Rússia contra a Ucrânia.
Todos os dados apresentados nesta peça foram obtidos através dos métodos OSINT. A informação foi recolhida e apresentada sob a forma de suposições que requerem mais investigação e atenção escrupulosa das autoridades policiais e de segurança, tanto da União Europeia como de países fora do bloco, também interessadas em prevenir a desestabilização nos Balcãs. Muitos exemplos nos últimos anos mostraram que a Rússia explora instituições religiosas, inclusive para encobrir as suas missões híbridas em solo estrangeiro.
Neste momento, não temos nenhuma prova ou evidência sólida para cimentar a suposição de que a delegação russa apelou ao clero para ajudar nas operações híbridas do Kremlin nos Bálcãs e na Polónia em troca de outra “doação” generosa para igrejas estrangeiras, mas tais riscos existem. Moscovo repetidamente tentou e testou ferramentas híbridas de suborno semelhantes em preparação para a agressão contra a Ucrânia e outros países. Portanto, é necessário investigar minuciosamente esses movimentos.
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