A deputada do parlamento polaco, Małgorzata Gosiewska (partido PiS), apresentou publicamente o relatório dedicado aos crimes da guerra russos, cometidos no leste da Ucrânia contra os civis e militares ucranianos. O jornalista polaco Wojciech Pięczak do jornal “Tygodnik Powszechny” conversou sobre a investigação com Adam Nowak (pseudónimo), o investigador do grupo, ex-oficial do Bureau Central de Investigação (CBS) da Polónia.
por: Wojciech Pięczak (versão curta, +16, o texto contém as descrições de tortura)
— Quantas pessoas foram entrevistadas?
— Quase 70. Apenas dois na Polónia, os restantes na Ucrânia. É apenas um fragmento daquela realidade. À partir do momento em que terminou a colheita de informações e começou o seu processamento nós sempre recebemos os dados de outras pessoas que querem dar o seu testemunho. Mas nós já não somos capazes de usá-los, porque, neste caso, o trabalho será adiado por mais um ou dois anos. É claro, se o tribunal de Haia mostrar interesse na matéria (e espero que isso irá acontecer, porque lá já começou um estudo preliminar sobre a situação na Ucrânia, e enviamos o nosso material como parte deste tema em particular), vamos fornecer [ao tribunal de Haia] as informações de contato de outras testemunhas.
— Porque as testemunhas são citadas no relatório de forma anónima?
— Preservação do anonimato é um procedimento padrão em tais investigações. Todas as vítimas aparecem no documento sob os números C-1, C-2, e assim por diante. «C» do inglês «case» – o caso. Se o Tribunal Penal Internacional começará o caso, nós iremos conectar os investigadores com as vítimas. No entanto, um par de pessoas já pode ser identificado, por exemplo, através dos fotografias contidas no relatório. Eles concordaram com isso, eles próprios já falam publicamente, falando abertamente sobre aquilo que lhes aconteceu.
— Você se lembra da sua primeira conversa?
— Era o voluntário batalhão “Donbas”. Ele caiu no cativeiro russo no cerco de Ilovaysk, foi torturado. Ele telefonou para seus companheiros que também passaram pelo cativeiro, estes enviaram-nos aos outros. Nós íamos de pessoa à pessoa. Os contactos úteis foram nós cedidos pela Małgorzata Gosiewska e pelos voluntários ucranianos.
— Todos estavam preparados para falar?
— Alguns não. Nós, infelizmente, não conseguimos documentar o caso de uso de tanta crueldade que foi absolutamente incrível, mesmo no contexto de tudo o que tínhamos ouvido. Uma jovem mulher concordou, mas depois não conseguiu falar.
— O que aconteceu com ela? Onde ela está agora?
— Ela tinha 22 anos. Ela caiu nas mãos dos mercenários chechenos que lutaram ao lado dos russos. Ela foi cativa durante cerca de duas semanas. Provavelmente, não é preciso explicar mais. [De momento ela] está num hospital psiquiátrico. Não se sabe se ela jamais sairá de lá.
— No vosso relatório nada se diz sobre os estupros.
— Não conseguimos obter os testemunhos de mulheres que sofreram a violência. Talvez, se passássemos mais tempo lá, teria sido diferente. Éramos apressados pelo tempo. Às vezes, íamos de uma vítima para outra durante a noite, para ganharmos o tempo. [Małgorzata] Gosiewska dirigia a viatura, nós dormíamos, depois nas manhas nós recolhíamos os depoimentos e ela dormia.
— Como se sabe que houve os estupros?
— Através das pessoas que cuidavam dessas mulheres, ou das testemunhas que viram essas cenas.
— Por exemplo, o grupo dos ciborgues (militares que defendiam o aeroporto de Donetsk) que caíram no cativeiro […] eles todos estão numa condição física e mental terrível. Eles eram [torturados] com o derramamento da água fervente, queimados com os ferros de engomar.
— Quais as outras situações que você se lembra mais?
— A conversa com um ciborgue. Eu não posso esquecê-la, embora tento manter uma distância psicológica. Ele caiu no cativeiro ferido, cheio de estilhaços. Ele contou que os russos, em vez de lhe ministrar algum curativo, começaram à torturá-lo. Uma enfermeira russa tentou convencer os seus colegas para que ele seja castrado. Felizmente, isso não aconteceu. Ou uma outra história: o soldado ucraniano contou como ele foi feito prisioneiro pelos chechenos e [estes] perguntaram o que ele preferia: que eles lhe cortaram o coração, os órgãos genitais ou ouvido? Ele escolheu ouvido. E eles o cortaram. Eles mataram o seu colega ferido. Depois veio uma espécie de comandante e proibiu matar os restantes. O homem sobreviveu, eu falei com ele. Sua imagem está no relatório. Ele realmente não tem a orelha.
— Identificar os criminosos e documentar as suas ações na base dos depoimentos de testemunhas e vítimas. [Foram identificados] várias dezenas [de criminosos]. Alguns parcialmente: temos o nome ou uma alcinha, uma descrição. Mas alguns [são identificados] na íntegra: temos apelidos, datas de nascimento, os locais da sua atuação e dos crimes cometidos.
— Faz sentido a publicação das alcunhas?
— Sim, porque o texto do relatório está disponível na Internet, e nós esperamos que este será lido pelas pessoas, que pelas descrições e alcunhas reconhecerão os criminosos, e, depois entrem em contato connosco. Se temos uma descrição de um homem chamado David, cuja vítima disse que antes da guerra, este trabalhou como chefe de subdivisão na polícia de Donetsk, e o relatório será lido por ex-policiais de Donetsk, há uma chance de que alguém o reconhecerá e ganhará a coragem para passar nos a informação. Pelo menos anonimamente, via e-mail.
— Vocês identificavam os criminosos baseando-se nas fontes abertas?
— Sim, nós não tínhamos acesso à qualquer informação classificada. Muito útil foi nós a informação da Internet ucraniana: há páginas [https://psb4ukr.org] locais onde as autoridades e os voluntários publicam diversos dados sobre a situação de Donbas, incluindo sobre o que está acontecendo do outro lado, escrevem quem é quem. No entanto, um monte de pessoas suspeitas por nós de crimes de guerra, não esconde nada. Pelo contrário, eles se gabam nisso na Internet russa, nas redes sociais.
— Pode dar algum exemplo?
— Por exemplo, um homem, que ainda não está presente na lista de criminosos, porque não conseguimos chegar às suas vítimas que sobreviveram. Nós seguimos o princípio de incluir na lista apenas aqueles que aparecem nos depoimentos recebidos. O seu nome é Alexey Milchakov, russo de São Petersburgo. Vinte e poucos anos. É um monstro com as características didáticas de um serial killer. A sua presença nas redes sociais, ele começou fotografado com um cachorrinho, em seguida, cortou sua garganta e comeu, para mostrar que é um verdadeiro homem. Ele se voluntariou ao Donbas, tornou-se um comandante da unidade no batalhão “Rusich” – são os nacionalistas russos com a inclinação eslava – fascista. No Facebook, ele publicou as suas fotos com os corpos esfolados. O tipo de psicopata pervertido. Na Rússia, ele é homenageado como um herói, é convidado à TV como um especialista em temas ucranianas. [No nosso relatório] aparece apenas nas notas.
— Vocês não acharam as suas vítimas?
— Vivas — não. Nós ainda temos apenas as descrições dos assassinatos cometidos por ele.
— Os assassinos que foram identificados, quem são estas pessoas?
— São bem diferentes. O grupo mais horrível são mercenários das repúblicas do Cáucaso. Os chechenos e ossetas, mas também os cossacos do Don da Rússia. Eles se caracterizam pela extrema crueldade. Mas outros grupos divergem deles em muito pouco. Há, por exemplo, uma organização chamada Exército ortodoxo russo – são voluntários da Rússia [composto pelos membros da organização neo-nazi russa RNE]. Eles se distinguem pela agressividade especial contra os “infiéis”, ou seja, aqueles que não pertencem à Igreja ortodoxa russa do Patriarcado de Moscovo. [Eles consideram que] “os infiéis” podem ser mortos. O mais severamente eles perseguem os protestantes ucranianos. Antes da guerra, havia [na Donbas] uma pequena comunidade protestante. Eles mataram vários padres, em alguns casos juntamente com as suas famílias. Outros foram torturados com extrema crueldade. Houve situações em que as suas ações, por exemplo, os ataques contra as igrejas protestantes, eram abençoados pelos padres ortodoxos. Quando eu ouvia os depoimentos sobre este “exército”, tinha a impressão de que são simplesmente os jihadistas ortodoxos. Na Internet eu encontrei os vídeos deles, por exemplo, com as instruções de como limpar as armas de maneira “ortodoxa”, para durarem mais tempo.
— E havia “bons russos”?
— Havia. Temos o testemunho de um homem que foi torturado durante várias horas, e depois, quando ele voltou à sua cela, alguém, em segredo, lhe trouxe os analgésicos. Então, não é possível dizer que do outro lado estão apenas os psicopatas. No entanto, houve um consenso social sobre a prática de tais atos, que são considerados crimes no direito internacional. Incluindo o consentimento do topo. Temos exemplos de torturas terríveis, eu diria, as torturas profissionais, que eram feitas pelos funcionários da inteligência militar russa – GRU.
— Como se sabe que eram realmente GRU?
— Primeiramente, eles próprios assim se apresentavam. Em segundo lugar, eles torturaram os oficiais profissionais do exército ucraniano, que anteriormente serviram no exército ainda soviético, passaram pela guerra no Afeganistão: eles conhecem este ambiente e os seus métodos.
— Como decorriam estas torturas?
— Por exemplo, com aquecedor de água era queimada a boca, debaixo das unhas eram marteladas as peças finas, com as facas eram perfurados os joelhos, se faziam as incisões musculares, as feridas eram polvilhados com o sal. Para obter informações também foram usadas as substâncias químicas.
— Quais os encontros com as vítimas eram mais difíceis?
— Após as conversas com as mulheres que foram torturadas me surgiu o pensamento que, se eu encontrar o criminoso, estaria pronto para matá-lo. Mas tentei manter o distanciamento, para que todo o procedimento decorrer de forma profissional. É impossível trabalhar sem o distanciamento. Mas é difícil, quando estas a ouvir de uma testemunha que numa qualquer cela de tortura ele tinha visto uma mulher grávida. Nós não sabemos quem ela era, e se ela sobreviveu.
— O que contavam as mulheres? Quem eles eram?
— Eles eram vítimas de torturas brutais, que incluía a corte das partes do corpo. Eles foram submetidos aos espancamentos terríveis, humilhação, na sua frente eram assassinados os seus amigos. Eram as mulheres e moças normais. Por exemplo, as voluntárias, que levavam os mantimentos [às forças ucranianas] e caíram no cativeiro. Mas era possível estar no cativeiro [terrorista] não apenas por causa das atividades políticas. Nas cadeias de Donbas também se encontravam os moradores normais, apenas porque possuíam alguns bens, uma casa bonita, um belo carro. No início, nos territórios ocupados os russos simplesmente armavam os criminosos locais, a escória da sociedade. Eles lhes deram as armas e disseram: agora vocês são a polícia aqui, deve haver a ordem. E estes separatistas escolhiam as vítimas entre os moradores locais e os mantinham nas caves, até que estes lhes passavam a sua casa ou os bens. Oficialmente, claro, isso parecia como a venda. As vezes, se alguém resistia bastante, era assassinado.
— Será possível, na base dos dados disponíveis, dizer qual foi a natureza dos crimes russos: esporádica ou sistémica?
— Certamente sistémica. Em Donbas ocupada não havia lugares, onde eram mantidos os prisioneiros ucranianos, militares e civis, em que não eram cometidos os crimes de guerra. Ou, dito de outra forma: havia muito poucos lugares onde eram mantidos os prisioneiros de guerra e civis, mas onde não havia assassinatos, tortura, etc. Em depoimentos recolhidos por nós há apenas um desses lugares – Ilovaysk. Os prisioneiros ucranianos, na sua maioria os homens do batalhão “Donbas” contaram que, num primeiro momento, capturados, eles passaram pelo inferno de Donetsk, mas depois, em Ilovaysk, foram bem tratados. O comandante separatista local disse lhes: “aqui ninguém vós toca, vocês são prisioneiros”. E confessou que agiu assim porque antes os seus homens foram capturados pelo batalhão “Donbas”, e foram bem tratados.
— Será que entre os criminosos identificados está presente Igor Girkin (pseudónimo “Strelkov”), o coronel russo, que, como ele mesmo se gabou nas entrevistas, começou a guerra na Donbas, e alguns meses era o ministro da defesa [dos terroristas] em Sloviansk e Donetsk?
— Sim, a sua actividade está bem documentada. À ele podem ser atribuídos os crimes enumerados no Estatuto de Roma, a base legal em que opera o Tribunal Penal Internacional. Em primeiro lugar, Girkin como o comandante é responsável pelos atos dos seus subordinados e por tolerar a prática de crimes. Em segundo lugar, em Sloviansk ele tinha a sua sede no antigo edifício do Serviço de Segurança Ucraniano (SBU). Agora Sloviansk está novamente sob controlo da Ucrânia, nós visitamos aquele edifício. A sala do Girkin estava exatamente acima da cave, onde os prisioneiros eram torturados. A cidade tinha pelo menos dois locais de tortura: no edifício da SBU e na polícia. No segundo lugar as pessoas também eram fuziladas, condenadas à morte, por assim chamado tribunal militar de Sloviansk. Girkin participava nas reuniões deste pseudo-tribunal, a sua assinatura está nas sentenças de morte. Sabemos que os veredictos eram emitidos à noite, e eram feitos pelas “troikas”, como eram chamadas pelos russos.
— Isso é uma referência aos tribunais especiais do NKVD, que emitiam as sentenças, nomeadamente, aos oficiais [polacos] em Katyn?
— Sim, a direta. Eles adoram os nomes da União Soviética antiga, da era estalinista. Eles chamavam os seus tribunais de “troikas”, o seu serviço de contra-espionagem era chamado de NKVD, etc. E mais um detalhe curioso, que mostra a mentalidade dessas pessoas: numa ata da “troika”, assinada, entre outros pelo Girkin, da reunião que teve o lugar em 24 de maio de 2014 e onde foram condenados à morte duas pessoas, diz-se que o veredicto é baseado no … Decreto do Presídio do Conselho Supremo da URSS de 22 de junho de 1941. Isso seria engraçado, se essas pessoas realmente não fossem assassinadas.
— Quantas pessoas foram sentenciadas pelas «troikas» de Girkin?
— Não sabemos. Após a libertação de Sloviansk, lá foram encontradas as valas comuns, mas certamente nem todas. No entanto, para fuzilar uma pessoa não eram necessárias nenhumas “sentenças”. Os depoimentos mostram que as execuções eram os atos quotidianos. Disparavam na nuca.
— E outros líderes das ditas repúblicas populares — de Donetsk e de Luhansk?
— O “chefe” da república de Donersk, Zakharchenko e o seu antecessor, [Alexander] Boroday, tal como outros líderes: todos eles são culpados de crimes de guerra. Ou, como comandantes ou como aqueles que estavam diretamente presentes nos locais de cometimento de crimes. Eles até não escondiam isso, e se fotografavam com os prisioneiros mortos, como, por exemplo, Zakharchenko. Temos um depoimento sobre Boroday, pessoa ligada ao Kremlin, que foi enviado à Donetsk de Moscovo. Os oficiais do GRU que torturavam uma das vítimas com qual falamos, o tratavam como chefe. Nós temos um caso documentado em que ele estava tentando obter o resgate de um milhão de dólares pela vida de um prisioneiro. Era um prisioneiro especial, que, como supomos, provavelmente pretendiam levar à Rússia e julgar lá juntamente com [piloto] Nadia Savchenko. Mas os carrascos de Donetsk o mutilaram bastante e Boroday, de acordo com o depoimento, disse-lhes que eles foram longe demais e “essa pilha de carne” agora não servia. Quando ele viu que não haverá o pagamento de resgate, ordenou a execução do prisioneiro. Este só sobreviveu porque no caminho à sua execução, no cemitério, ele foi “pego” por um outro grupo.
— Outro grupo?
— Lá as coisas funcionam assim. O prisioneiro foi levado por um grupo [terrorista] rival, que o trocou por alguém de quem eles precisavam, mas que se encontrava numa cadeia ucraniana. Quando eu recolhia os depoimentos, tinha a impressão que do outro lado não está um pseudo-estado separatista ou russo, mas bandos criminosos. Eles competiam nos saques, arrancavam uns aos outros os prisioneiros valiosos, pelos quais poderiam pedir o resgate…
— Porque vocês, polacos, se dedicam à isso?
— Para que tudo isto não morra de causas naturais, de modo que o mundo não deixe isso esquecido, para que o mundo saiba.
— Este motivo aparecia nas palavras das vítimas: para que o mundo saiba?
— Às vezes eu via nos olhos das pessoas com quem falávamos, a esperança (que imponha, diria eu, uma grande obrigação moral) que alguém, ainda mais os estrangeiros esté interessado nisso, então isso terá algum efeito.
— E assim será?
— Se o caso subir à tribunal de Haia, este poderá decretar a procura dos criminosos, poderia enviar os seus próprios investigadores. Ucrânia não assinou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, mas o parlamento ucraniano decidiu que tudo o que aconteceu depois do início da guerra, passa para a jurisdição de Haia. Espero que, mesmo que essas pessoas não pudessem ser levados à justiça, porque a Rússia não vai os entregar, pelo menos eles vão sentir o medo. E se reduzirá a escala de crimes. Afinal, nada disso acabou, tudo continua. Estamos em contato com as pessoas que estão envolvidas na troca de prisioneiros, eles regularmente telefonam para nós. Dois dias atrás, recebi as informações sobre um homem que foi libertado do cativeiro russo, passando lá um ano. Dizem que ele esta em um estado terrível. Mas ele quer falar…
Ler o relatório completo (em inglês, francês e polaco): http://www.donbasswarcrimes.org/report
O grupo polaco de investigação na rede Facebook: https://www.facebook.com/RosyjskieZbrodnieNaUkrainie
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