Os jornalistas do jornal ucraniano Tyzhden (The Ukrainian Week) encontraram-se com o ex-general (reformado) Ben Hodges, ex-comandante do Exército Americano na Europa, agora Presidente de Estudos Estratégicos no Centro de Análise de Política Europeia (CEPA) para discutir possíveis ataques russos à Ucrânia, eventual resposta ocidental a essas acções e os problemas da região do Mar Negro.
Entrevista de Hodges:
Tyzhden: Acha que as atuais situações políticas, económicas e militares são favoráveis à invasão da Rússia? Se não – porquê?
Hodges: Com certeza, as condições serão perfeitas em Setembro, com o período de seca do verão e a falta de água na Crimeia, a operação de desinformação que o Kremlin está a realizar nesta região, onde se fala sobre uma crise humanitária. E, claro, a nova Constituição da Federação Russa também é o que importa.
Basicamente, a Rússia tenta reivindicar “legalmente” partes antigas da União Soviética. Emitem também passaportes russos para cidadãos ucranianos. Todas essas coisas são condições políticas e económicas. É igualmente preciso pensar no exercício chamado Kavkaz 2020, onde estará disponível uma quantidade significativa de forças militares russas na região.
Também é necessário analisar a situação geral nos Estados Unidos. Estamos distraídos, pois, agora temos muitos desafios por causa do COVID-19, da violência social interna e, principalmente devido às eleições presidenciais.
Em seguida, pode acrescentar a péssima decisão de retirar 9500 militares americanos da Alemanha. E a maioria dessas tropas é essencial para a logística e reforço rápido.
Portanto, todas essas coisas juntas não significam necessariamente que haverá um ataque. Mas as condições estão lá.
É por isso que é tão importante que, não apenas as Forças Armadas da Ucrânia (UAF) estejam vigilantes, mas também todos os estados da região, como a Geórgia, a Roménia e Turquia.
E os Estados Unidos também devem prestar atenção, assim como a OTAN. Acho que a Alemanha e França deveriam estar realmente a pressionar o Kremlin, mas ainda não o fizeram. Estes países também têm os seus próprios desafios internos com a recuperação pós-pandemia. Então, se o Kremlin pensar que o Ocidente poderá dar uma resposta mais fraca, acho que há um risco.
Presumivelmente, os russos poderão planear qualquer tipo de ataque.
È óbvio que espero estar errado e tenho certeza de que as UAF tomarão todas as medidas para estarem preparadas e para manter a vigilância. É realmente importante que a Ucrânia trabalhe em estreita colaboração com a Geórgia, a Moldávia e a Roménia para acompanhar de perto esse exercício (Kavkaz 2020), mas também o que está a acontecer no Mar Negro e no Mar de Azov.
Os ucranianos precisam de uma combinação de todos os recursos de inteligência: SIGINT e inteligência de plataforma aérea. A Ucrânia tornou-se muito eficaz a trabalhar com drones, isso também seria muito importante. Mas além disso, necessita de vigilância marítima para registar o que está a acontecer no Mar Negro.
Tyzhden: O que poderia ser usado como casus belli? E qual é o motivo da Rússia para dar esse passo?
Hodges: É claro que essa escassez de água na Crimeia, parcialmente, como resultado das condições climatéricas e em parte devido ao bloqueio ucraniano do canal norte da Crimeia.
O Kremlin está a falar da crise humanitária, e não consegue resolver esse problema sozinho, trazendo mais água ou criando alguma capacidade para um processo de dessalinização.
Penso que o pretexto para os russos seria dizer: “Temos uma crise humanitária, não temos escolha e precisamos de abrir as comportas perto da cidade de Nova Kakhovka”.
Já existem algumas operações de desinformação nessa região, que se referem a essa situação. Não sei como seria essa invasão.
Poderia ser através do uso de helicópteros com forças especiais, pode ser através de pessoas que se infiltram sem uniforme russo e sem insígnias (internet meme #ih_tam_net), ou um ataque aéreo. O objectivo principal é destruir a comporta do Canal da Crimeia do Norte, mas há várias hipóteses que permitem aos russos voltar a ter água do rio ucraniano Dnipro, disponível na Crimeia. Se os russos fizerem isso e se o Ocidente responder de uma forma minimalista e sem convicção, não sei onde esta situação poderá parar.
A Federação Russa não quer apenas destruir e partir deixando a zona destruída. De facto, se eles conseguirem controlar a zona de Nova Kakhovka, além do que já têm ocupado, nomeadamente, a costa da Crimeia e 10 mil militares na Transnístria, tudo o que resta como território ucraniano é apenas uma pequena área perto de Odesa.
A Marinha Russa está sempre a realizar treinos militares, que incluem o treino para o bloqueio dessa área.
Na minha opinião, esse é o objectivo a longo prazo: controlar completamente toda a costa do Mar Negro e isolar a Ucrânia.
Vocês já têm problemas com o mar de Azov e o Kremlin viu que o Ocidente não reagiu.
No Estreito de Kerch, não havia “homens verdes”, havia a Marinha Russa, que capturou navios ucranianos. Se a comunidade ocidental não se opõe a isso, De Facto, esta torna-se água territorial russa. Porque, obviamente, eles não estão a sair.
Como viram que não havia reação adequada às suas acções em Azov, eles tornar-se-iam muito mais ousados.
Quando vocês combinam toda esta informação com o facto de que os EUA andam distraídos e existe falta de acções fortes apropriadas da administração americana contra a Rússia, o Kremlin pode ser tentado a fazer alguma coisa aproveitando a ocasião considerando todos esses factores.
Tyzhden: Quais desenvolvimentos (políticos e militares) do lado russo que poderiam ser um sinal precoce de preparação para a invasão?
Hodges: O primeiro sinal é a construção de infraestruturas com capacidades médicas, como hospitais de campanha, mais do que seria necessário para apenas exercícios regulares. Claro, que também munição e outras coisas do género. A preparação logística é o que demora mais tempo. Eu poderia imaginar e esperar que os serviços de inteligência ucranianos estivessem a ouvir tudo o que pudessem.
Ao mesmo tempo, podia prever que as forças russas seriam disciplinadas no que diz respeito à sua segurança operacional.
E, claramente, devemos examinar o espaço da informação, se houver um aumento significativo nas notícias sobre a crise humanitária. Potencialmente, a Ucrânia poderia recolher alguns dados através de inteligência usando os seus agentes em Donbas, porque há milhares de oficiais e militares russos que poderiam contar de alguma forma sobre o que está a acontecer. Por outro lado, espero que a OSCE dê um passo ousado para que a sua SMM ouça, analise o desenvolvimento da situação e divulgue informação utilizando activamente as redes sociais.
Tyzhden: Mas, como ouvimos nas notícias, terroristas em Donbas proíbem o livre acesso a observadores da Missão Especial de Monitorização da OSCE dizendo que é uma medida para travar a pandemia.
Hodges: Neste momento, estou decepcionado com a Alemanha, a França e o Reino Unido, todos eles não fazem mais para pressionar o Kremlin para permitir que a OSCE faça seu trabalho. Para mim, é absolutamente inaceitável. E o Kremlin vê isso. É uma pena, porque há muitos homens e mulheres corajosos na OSCE, que estão a correr riscos ao fazer seu trabalho.
Existem algumas medidas que o Ocidente e a Ucrânia possam fazer com o fim de impedir uma possível invasão?
Hodges: Se pensa em termos de diplomacia, a Ucrânia deveria trabalhar horas extra através de canais diplomáticos com Berlim, Paris, Londres, assim como Washington e Bruxelas, para aumentar a consciência de todas essas questões, chamar a atenção e lembrar as pessoas de que soldados ucranianos ainda estão a ser mortos todas as semanas, que a Rússia ainda ocupa ilegalmente a Criméia, que Moscovo faz planos completamente ilegais.
Kyiv precisa de criar uma colaboração mais firme com a Roménia, a Geórgia e Turquia. Juntos, poderiam ser uma voz diplomática mais alta, que pode ser ouvida em Bruxelas e Washington. Para mim, é o primeiro passo.
No espaço de informações, é preciso que o governo ucraniano faça esforços constantes para comunicar com todos os cidadãos, explicar o que está a acontecer e desenvolver resiliência na sociedade. Portanto, o povo não seria susceptível à desinformação russa. É fácil para mim dizê-lo, mas é mais difícil de fazer. Mas é esse o papel dos líderes.
No campo militar, devem continuar a manter a vigilância no litoral e no ar, observando os indicadores, de que falámos.
Não podem ter todo o exército sempre em modo de alerta máximo pronto para lutar. Isso não é sustentável. Não é preciso alertar todos.
Mas eu focaria os meus esforços de inteligência, ao mesmo tempo, garantindo que todas as nossas forças militares estivessem a fazer o trabalho adequado para estarem prontas para lutar, tais como manutenção e treino.
No campo económico, a Ucrânia deve fazer com que todos os países da Europa declarem que qualquer navio que navegue de qualquer porto da Crimeia é ilegal.
A Crimeia deve ser algum tipo de veneno para eles. E não deve ser permitido a nenhuma embarcação da Crimeia entrar em nenhum porto europeu, não importa se é a marinha russa ou embarcação comercial. Essa poderia ser uma maneira eficaz de lembrar que a anexação russa da Crimeia é ilegal. Pelo que me lembro, o presidente Poroshenko declarou todos os portos fechados. Portanto, essa proibição pode ser um passo importante dentro do sistema da Lei.
Também faz parte da razão pela qual não há mais atenção ao Mar Negro e por que o Ocidente não tem uma estratégia para esta região como a Rússia tem, – apesar de todo o respeito pelo povo ucraniano e georgiano, não há investimentos.
Não há risco incorrido. Se França, a Alemanha, os EUA, o Reino Unido ou outros países não têm um grande investimento económico na Geórgia, Ucrânia e Roménia, então, para ser honesto, não há nada pelo que lutar.
E é exactamente isso que a Rússia quer.
Moscovo tornou impossível para a Geórgia progredir no porto de Anakliia, por exemplo. Se eles tivessem esse porto na Geórgia, o país tornar-se-ia um centro logístico entre a Eurásia e a Europa. Portanto, todos os países envolvidos estariam interessados na segurança da Geórgia.
Então, poderiam ter tráfego indo para Odesa e Constança que mudaria a dinâmica económica de toda a região. E essa é a última coisa que a Rússia quer. O Kremlin precisa de ter controle total sobre o Mar Negro. Isso permite-lhes continuar a operar na Síria e na Líbia.
Nós, no Ocidente, não vemos o assunto dessa maneira. A Rússia já tinha usado refugiados sírios como uma arma, agora podem repetir isso na Líbia. A guerra civil, na qual a Rússia apoia o general Haftar, gera milhões de refugiados, que voltarão a tentar atingir a Europa. E isso não é uma coincidência.
Tyzhden: Se estivermos a falar sobre o pior cenário quando a invasão russa aconteceu, qual poderia ser a reação dos países ocidentais, antes de mais, dos EUA, Alemanha, França? E a China e Turquia?
Hodges: Suponho que, imediatamente têm de ser adoptadas as iniciativas políticas e a condenação diplomática pela UE, pelos EUA, e até pela China. Depois disso, deve começar um aumento significativo das sanções, como discutimos acima.
A Alemanha deve parar imediatamente o NordStream-2, o que tem que ser feito no primeiro dia.
Se a Rússia fizer alguma coisa, esse deve ser o fim deste projecto. Não sei que tipo de acção militar seria tomada, mas acho que, neste caso, a Ucrânia deveria pedir a Turquia para negar qualquer movimento marítimo russo pelo estreito apelando à Convenção de Montreux.
Espero que a Ucrânia faça agora um trabalho diplomático com a Turquia, para Ancara estar preparada para fazer isso.
Obviamente, a Rússia também possui enormes alavancas para pressionar a Turquia. Com certeza, os nossos aliados romenos devem ficar muito preocupados. A Rússia já capturou plataformas de gás ucranianas, o que significa que o Kremlin está a expandir a sua zona económica exclusiva.
Ainda por cima, a Rússia está a na fronteira com a zona económica exclusiva romena, considerando que debaixo de água no perímetro dos campos de gás há uma sobreposição do que a Rússia afirma ser sua zona económica exclusiva.
Penso que os Estados Unidos e os outros membros da OTAN devem deixar bem claro que estão prontos para defender os nossos aliados romenos e búlgaros.
Outro passo que o Ocidente poderia dar é atingir a Rússia noutro lugar, como na Síria, por exemplo.
Digamos, um ataque cibernético de algum tipo, que interrompa a sua capacidade de operar em Tartus ou noutros lugares.
E com certeza deveríamos fechar mais de dois grandes bancos russos, para que isso seria uma verdadeira dor, não apenas sanções. Caso contrário, o Kremlin saberá que estamos muito preocupados, mas não com muita seriedade.
Tyzhden: Acha que esses passos do Ocidente são possíveis ou a Ucrânia teria apenas mais uma rodada de expressões de “profunda preocupação”?
Hodges: Claro, infelizmente, isso é muito provável. Uma forte liderança americana inquestionável é tão importante nessa situação. O que é mais preocupante é que a liderança americana no momento não parece ser muito forte, consistente e clara em relação ao Kremlin. É por isso que o risco aumenta.
Tyzhden: Como enfrentamos um conflito híbrido, que meios não cinéticos o Kremlin poderia usar além das forças convencionais?
Hodges: Sem dúvida, se o Kremlin actuar, haveria ataques cibernéticos maciços contra a Ucrânia para interromper a infraestrutura de comunicações, comando e controle. Assim como os esforços de desinformação, estes continuarão.
Eu receio ver um bloqueio total do Mar de Azov. Eu também imagino a possibilidade de distúrbios civis maciços que seriam gerados pelas forças especiais russas em diferentes comunidades.
Eles têm como objectivo distrair a atenção das pessoas. Portanto, haveria muitos lugares em todas as regiões da Ucrânia, não apenas no sul, com vários problemas para Kyiv lidar, a fim de manter as pessoas afastadas e distraídas.
Biografia
Tenente-General (reformado) Ben Hodges. Nascido em 1958. Em 1980, formou-se na Academia Militar dos Estados Unidos, tornou-se oficial de infantaria, fez serviço como líder de pelotão. Em 1993, formou-se na School of Advanced Military Studies. Em 2001, formou-se no National War College. Após sua primeira missão como tenente de infantaria em Garlstedt, Alemanha, comandou unidades de infantaria a nível de Companhia, Batalhão e Brigada na 101ª Divisão Aerotransportada, incluindo o Comando da Primeira Brigada de Combate “Bastogne” da 101ª Divisão Aerotransportada na Operação Liberdade Duradoura /IRAQI FREEDOM (2003-2004). Outras atribuições operacionais incluem Chefe de Operações do Corpo Multinacional no Iraque durante a Operação Liberdade Duradoura (2005-2006) e Director de Operações do Comando Regional Sul em Kandahar, Afeganistão (2009-2010). Em Novembro de 2012, assumiu o comando do Comando Aliado de Terra. Hodges tornou-se comandante do Exército dos Estados Unidos na Europa em Novembro de 2014, mantendo essa posição até se aposentar do exército no início de 2018. A partir de 2018, ele é Pershing Chair em Estudos Estratégicos no Centro de Análise de Política Europeia (CEPA).
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Tradução: Helena Sofia da Costa. Distribuição e partilha com referência à fonte são bem-vindas! O InformNapalm não tem nenhum apoio financeiro do governo de nenhum país ou doador, os únicos patrocinadores do projeto são os seus voluntários e leitores. Também pode ajudar o InformNapalm com uma contribuição através da plataforma Patreon.
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