No início de Novembro, a organização de investigação Conflict Armament Research (CAR) publicou um estudo sobre a origem das pequenas armas e munições usadas nas hostilidades no leste da Ucrânia. Este estudo foi realizado com o apoio da União Europeia e do governo alemão. Os autores indicam que o projeto durou 3 anos.
O New York Times classificou este estudo como “um dos mais abrangentes até hoje sobre o assunto, oferece uma visão refinada das transferências ilícitas de armas na Ucrânia e ilustra a extensão do comércio de armas que está a alimentar a única guerra activa na Europa”.
Neste artigo, ao analisar escrupulosamente o conteúdo do relatório da CAR, oferecemos a nossa visão sobre as implicações das suas descobertas, bem como relacionamos a metodologia e o foco de nossos colegas britânicos com os da Comunidade Voluntária Internacional de informação InformNapalm.
Metodologia da Pesquisa de Armamento de Conflito
Na conclusão do relatório, os pesquisadores da CAR afirmaram que os esforços para verificar as alegações de abastecimento de armamento para a zona de conflito no leste da Ucrânia até agora basearam-se em exames de fotografias e vídeos de código aberto de armas e munições, ao invés de investigações sistemáticas baseadas em campo. Para preencher essa lacuna de evidências, a CAR realizou uma investigação de campo de três anos de material recuperado da autodeclarada “República Popular de Donetsk” (RPD/DNR) e da “República Popular de Luhansk” (RPL/LNR).
Em consonância com a abordagem geral das investigações da CAR, este estudo concentrou-se principalmente em rastrear a origem das armas pequenas e munições apreendidas pelas forças ucranianas durante as hostilidades no leste da Ucrânia. O estudo altamente granular e meticuloso de milhares de cartuchos de munição, dezenas de armas de fogo e lançadores de granadas adoptou uma abordagem praticamente forense, a mostrar fotografias detalhadas em escala e a descrever todas as marcações e outras particularidades de cada item estudado. Os pesquisadores esforçaram-se para rastrear cada item até a fábrica de origem e estabelecer a sua data de produção.
O relatório também contém uma secção relativamente modesta que inclui fotografias de vários camiões e veículos de combate russos, ao documentar números laterais apagados, pintados sobre marcações táticas e, em alguns casos, anos de produção.
Armas pesadas e tipos modernos de equipamento militar russo não foram descritos neste relatório.
Os pesquisadores conseguiram detectar 41 tipos de armas pequenas e milhares de cartuchos até as fábricas de origem, que na grande maioria dos casos estão localizados na Rússia. Os pedidos de detecção da localização foram enviados às autoridades e às empresas relevantes em muitos países, mas principalmente na Ucrânia e na Rússia. A equipe recebeu uma cooperação total do lado ucraniano, mas não obteve resposta do lado russo.
Diferenças entre metodologia e abordagem da InformNapalm e da CAR
A diferença metodológica mais importante é que a InformNapalm usa inteligência de código aberto (OSINT), enquanto a CAR usa os dados de fontes abertas apenas ocasionalmente, preferindo trabalhar na prática com as evidências materiais disponíveis.
Na introdução ao relatório, a CAR afirma que a Ucrânia tem lutado contra “elementos separatistas” em Donbas, conhecidos como “formações armadas”. A CAR não chega a fornecer qualquer avaliação política das suas conclusões, sendo limitado pelo âmbito e formato da sua pesquisa. Nós, membros da Comunidade Voluntária Internacional InformNapalm, não temos essas restrições e temos uma abordagem diferente para a natureza do conflito. Temos bases firmes para acreditar que a Ucrânia está a enfrentar a agressão híbrida da Federação Russa, enquanto os “separatistas locais” em Donbas são nada mais do que colaboradores de um estado agressor, e “certas áreas das regiões de Donetsk e de Luhansk”, bem como a Crimeia, são apenas partes do território ucraniano ocupado pela Rússia.
A actividade da CAR centra-se principalmente nas armas ligeiras e na origem destas armas ao nível da sua produção. Por outro lado, a InformNapalm tomou uma decisão consciente e precoce de se concentrar nos tipos de equipamento militar pesado e tecnologicamente avançado (artilharia, tanques de batalha principais, sistemas de guerra eletrónica e drones, veículos de combate e transporte, etc.) que não estão em serviço das Forças Armadas da Ucrânia e outras forças de segurança, mas está (ou estava) a serviço do Exército Russo.
Acreditamos que a presença deste tipo de equipamento no território da Ucrânia prova, sem sombra de dúvida, a participação da Federação Russa como Estado agressor no conflito armado no Leste da Ucrânia. A InformNapalm também presta atenção especial ao quadro de militares russos que operam este equipamento e armamento no território ucraniano.
Levando em consideração essas diferenças, procuramos analisar as conclusões apresentadas no relatório da CAR
Conclusões notáveis do relatório da CAR e suas implicações
- O arsenal de “formações armadas” detectado ou mencionado no relatório da CAR inclui espingardas de assalto e de atiradores, lançadores de granadas e lança-foguetes, munições guiadas com precisão, minas terrestres, armas antitanque guiadas (sigla em Inglês: ATGW), sistemas portáteis de defesa aérea (sigla em Inglês: MANPADS), veículos blindados (sigla em Inglês: APC), tanques de batalha principais (sigla em Inglês: MBT) e VANTs. Trata-se de uma gama impressionante de armamentos, dificilmente possível de acumular como espólio de guerra “capturado pela milícia de Donbas” em combate contra as Forças Armadas regulares da Ucrânia.
- As fábricas no território da Federação Russa dos nossos dias manufacturaram a maioria absoluta das munições e 41 das 43 armas de fogo foram documentadas no relatório. Uma proporção significativa dos itens recuperados foi fabricada após a dissolução da União Soviética. Por outro lado, as autoridades ucranianas competentes, nas suas respostas oficiais aos pedidos de detecção da CAR relativos a praticamente todas as armas leves documentadas, confirmaram que os itens não estavam em serviço das Forças Armadas da Ucrânia, nem foram registados como roubados, perdidos ou anulados, nem foram transferidos para quaisquer outras unidades militares. Considerados no seu conjunto, esses resultados provam que as armas em questão não poderiam ter sido capturadas em batalha pelas unidades ucranianas ou “encontradas” nas minas de carvão de Donbas”.
- Os pesquisadores da CAR enviaram igualmente solicitações de pesquisa às autoridades e fábricas russas competentes, ao fazer um esforço de boa fé para dar à Rússia uma chance de responder a solicitações bem documentadas e politicamente neutras e provar que não é um lado do armado conflito na Ucrânia, mas não receberam nenhuma resposta do lado russo. Na nossa opinião, a falha da Rússia em responder é outra prova da sua participação directa na guerra contra a Ucrânia, mais revelador do que qualquer acusação política directa.
- O relatório observa uma forte prevalência de espingardas de assalto e espingarda-metralhadoras de calibre 5,45×39 mm, em comparação com o calibre mais obsoleto de 7,62×39 mm. Isso vem em forte contraste com as descobertas da CAR noutras regiões (89,47% das armas de calibre 5,45 na guerra russo-ucraniana, em comparação com cerca de 5% nos conflitos na Ásia e em África). Nove dos 20 modelos de armas documentados na Ucrânia nunca foram documentados pela CAR em nenhum outro lugar. Isso inclui uma arma de atirador designado VSS de 9×39 mm e uma arma anti-material ASVK de 12,7×108 mm, fabricada em 2013. A CAR não encontrou evidências de ligações de abastecimento com outros conflitos. Ao contrário desses conflitos, o da Ucrânia não parece depender de cadeias de abastecimento extra-regionais. Todas essas armas foram produzidas na Rússia, embora as armas VSS e ASVK sejam armas do exército em serviço no Exército russo e nas Forças de Operações Especiais, não estão disponíveis comercialmente. Ambas a VSS e ASVK, também foram documentadas pela InformNapalm. Essas constatações refutam a narrativa da propaganda russa sobre a “loja de excedentes militares” como a fonte de suprimentos para as formações armadas que operam em Donbas.
- A maioria das armas pequenas documentadas tem números de série correspondentes nos seus componentes principais, indicando que os componentes são originais e não foram retirados de outras armas. Isso sugere uma curta cadeia de tutela entre o ponto em que as armas deixaram uma instalação de produção ou armazém militar. Parece que a referência do jornalista do New York Times ao “comércio de armas” neste conflito está errada. Essas duas constatações sugerem fortemente que as armas pequenas foram fornecidas diretamente dos armazéns militares russos.
- A CAR observou a obliteração sistemática de marcas de identificação primária em certos tipos de armas, munições, veículos e drones com a intenção de impedir a atribuição e rastreabilidade, ocultar evidências do ponto preciso de desvio ou para mascarar o país de fabrico. Especificamente, as marcas foram apagadas, por exemplo, em cerca de dois terços do RPO-A (Rocket-propelled Infantry Flamethrower-A Bumblebee), todos os lançadores de foguetes descartáveis MRO-A (a Russian self-contained, disposable single shot 72.5 mm rocket launcher), em vários componentes eletrónicos dos drones Orlan-10 e Eleron-SV, os números laterais foram retirados do veículo de combate BMD (não em operação com Exército ucraniano), as marcas de identificação foram apagadas das minas terrestres MON-50, etc. A CAR observa que a abordagem para remover as marcas de identificação evoluiu com o tempo, em resposta a um maior escrutínio. Esforços consistentes para eliminar números de série e outras marcas de identificação positiva estão bem em linha com a estratégia de informação russa amplamente exposta de negação plausível, provando mais uma vez a natureza híbrida da guerra travada pela Rússia contra a Ucrânia.
- Embora os membros das formações armadas russas na Ucrânia e os seus fornecedores tenham eliminado algumas das marcas, deixaram propositalmente outras intactas. As marcas residuais, como números de série ou de lote secundários, permitiam aos usuários manter a armazenagem. Esse método sugere que os fornecedores e usuários finais dessas armas apliquem processos de manutenção de registos e gestão de armazenagem alinhados com uma doutrina militar estabelecida e que operem dentro duma estrutura de logística centralizada e maior. O contexto do relatório da CAR, bem como as conclusões da InformNapalm e doutros grupos OSINT, deixam bem claro que se trata da doutrina e da estrutura logística do Exército Russo.
- As minas terrestres ganharam uma pequena seção própria no relatório. A CAR documentou cinco modelos de minas terrestres: o MON-50, o OZM-72, o PMN-2, o POM-2 e o TM-62M. Todos eles são de origem russa; a maioria foi feita nos tempos pós-soviéticos. Quatro tipos são minas antipessoal proibidas pela Convenção de Ottawa, ratificada pela Ucrânia, mas não pela Rússia. A Ucrânia ainda está no processo de eliminação das suas minas terrestres antipessoal. O exército ucraniano não usa minas terrestres antipessoal, mas o exército russo sim.
- A CAR observou que as formações armadas usam uma frota de drones militares de fabrico russo na Ucrânia, tendo documentado o Orlan-10, Eleron-3SV, Granat-2, Zastava e um VANT de designação desconhecida semelhante à família Orlan-10. A InformNapalm documentou os quatro tipos de drones identificados, bem como mais quatro nas suas investigações. Também já escrevemos sobre o VANT não identificado. Além de ser usado na Ucrânia, o mesmo VANT misterioso foi abatido sobre a Turquia, onde aparentemente foi operado pelas forças russas localizadas na Síria. A CAR relata que as forças russas usaram os mesmos drones não identificados sobre o território de estados membros da UE, como a Lituânia e a Polónia, tendo-os lançado do território da Belarus. As organizações militares da Lituânia, Turquia e Ucrânia não conseguiram identificar o tipo desse drone, observando que se trata de um desenvolvimento muito recente e secreto da indústria militar russa. Coletivamente, as descobertas da CAR e da InformNapalm supõem fortemente que o avançado e caro equipamento de reconhecimento aéreo russo na Ucrânia não é operado por nenhuns “rebeldes separatistas”, mas sim, por militares russos profissionais.
- A seção do relatório da CAR dedicada aos VANTs também levantou uma importante questão da tecnologia militar e de dupla utilização estrangeira, ou seja, da UE, que está a chegar aos drones russos documentados. Apesar do embargo de armas imposto à Rússia em 2014, componentes britânicos, tchecos, franceses, alemães, espanhóis e dos EUA foram usados na produção desses VANTs. O relatório mostrou algumas empresas europeias e russas envolvidas na cadeia de abastecimento de material de óptica, electrónica e motores, desde seus fabricantes na UE até as empresas de defesa russas sancionadas por meio de uma rede de distribuidores de componentes russos e estrangeiros independentes. Os relatórios também levantaram o problema específico dos requisitos de licenciamento opacos para componentes de uso duplo e a baixa eficácia do embargo no que diz respeito à fabricação de drones.
- As constatações da CAR indicam igualmente que as formações armadas russas na Ucrânia usaram armas anteriormente capturadas pelas Forças Armadas Russas na Geórgia durante a guerra Russo-Georgiana em Agosto de 2008. A saber, esses são mísseis antiaéreos GROM polacos. A Geórgia comprou à Polónia 100 tubos de lançamento MANPADS e mísseis desse tipo. Muitos desses sistemas foram usados em combate e pelo menos 26 mísseis permaneceram em posse do exército georgiano. No entanto, alguns foram abandonados no campo de batalha, foram recuperados pelas forças russas e seguiram para a zona de conflito na Ucrânia. As respostas das autoridades competentes polacas, georgianas e ucranianas aos pedidos de pesquisa da CAR deixam claro que esses MANPADS não poderiam ter vindo de outra fonte senão das Forças Armadas da Federação Russa.
Conclusões
A CAR adoptou uma abordagem um tanto compartimentada para suas próprias constatações, deixando certo espaço para interpretações erróneas (por exemplo, o tipo que testemunhamos no artigo do New York Times) ou para as manipulações de propaganda do Kremlin. A omissão de qualquer menção aos sistemas de artilharia pesada e sistemas avançados de guerra electrónica (que foram documentados na zona de conflito no leste da Ucrânia não apenas por grupos OSINT, mas também pela Missão Especial de Monitorização da OSCE) pode causar uma impressão num leitor menos preparado que esta guerra é travada principalmente com espingardas de assalto. Por outro lado, actualizações diárias da zona de conflito pelas Forças Armadas da Ucrânia mostram que a artilharia e os disparos de franco-atiradores são a principal causa de baixas militares e civis.
Ao mesmo tempo, as conclusões do relatório da CAR na sua totalidade apontam fortemente para a Federação Russa como a única fonte de armas na guerra híbrida no leste da Ucrânia. Com uma pitada de análise, essas constatações também refutam os pontos de discussão da propaganda russa sobre “espólio de guerra capturado pelos mineiros rebeldes”, “loja de excedentes militares” ou “achados nas minas de carvão de Donbas” como fonte de armamento para esta guerra. Este relatório complementa de forma convincente as investigações da InformNapalm e doutros grupos OSINT com os dados sobre as origens das armas usadas na guerra. Também fornece um corpus de evidências de alta qualidade em tribunal contra a Rússia como o estado agressor para os tribunais internacionais.
Gostaríamos de agradecer aos colegas da Conflict Armament Research pelo seu trabalho meticuloso e profissional. Oferecemos igualmente a nossa cooperação para qualquer pesquisa adicional que esta organização possa realizar sobre a guerra na Ucrânia. Pedimos aos diplomatas da Ucrânia que estudem as conclusões do relatório da CAR e as adicionem ao seu conjunto de ferramentas, juntamente com os dados recolhidos pelos grupos de investigação OSINT bem como pela Missão Especial de Monitorização da OSCE.
A publicação foi preparada por Artem Velichko e Roman Burko especialmente para a InformNapalm. Tradução: Helena Sofia da Costa. Distribuição e partilha com referência à fonte são bem-vindas! O InformNapalm não tem nenhum apoio financeiro do governo de nenhum país ou doador, os únicos patrocinadores do projeto são os seus voluntários e leitores. Também pode ajudar o InformNapalm com uma contribuição através da plataforma Patreon. Siga o InformNapalm no Facebook / Twitter / Telegram e fique a par das novas publicações da comunidade.
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